Desde cedo, aos 17 anos, a presidente do IDESQ, Antonia Aurineuda da Silva, mais conhecida como Leda, já atuava no movimento negro, iniciando uma trajetória de vida que é marcada, até hoje, por muitas lutas: contra o racismo, pela igualdade, por espaços para mulheres e jovens, por conscientização, por oportunidades.
Neste Mês das Pretas, o IDESQ compartilha um pouco da história da mulher à frente de nossa presidência. Uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado no Ceará (MNU), que comemorou 25 anos de existência no dia 22 de julho, Leda traz consigo a força da mulher negra, que sabe que é a base da sociedade, e reconhece no lugar que ocupa o poder de transformação da juventude, apesar de acreditar que muito ainda deve ser feito para chegar a uma parcela da população negra que só o tráfico atinge.
Confira entrevista completa:
Quais os desafios de estar à frente de uma instituição como o IDESQ, que tem mais de 35 anos de trabalho?
Já estou no segundo mandato caminhando para o final. Estamos entre 6 a 7 anos, e é muito importante pra mim quanto mulher negra, pensando no empoderamento da mulher negra, estar a frente de uma instituição que desenvolve um trabalho muito importante com as juventudes no Ceará todo. É muito significativo e são grandes os desafios, me completa muito como mulher, que sempre lutou junto com a juventude e outros segmentos. Ser presidente de uma instituição que executa a lei do aprendiz e a luta por políticas públicas para a juventude me traz uma sensação maravilhosa de que eu estou ativa, de que eu estou em movimento dentro da comunidade e que muito precisa ser feito pela juventude, sobretudo a juventude negra. Então poder estar à frente de uma instituição, poder colaborar, poder dialogar, fazer o monitoramento, pra mim é muito importante. E também fazer parte da tomada de decisões né, com o coletivo do IDESQ.
Você é uma mulher negra presidente de uma instituição que atua em todo o Ceará. Qual o significado disso pra você?
Estar na presidência do IDESQ representa pra mim o fruto do trabalho e das coisas que eu participei dentro da comunidade. Ainda bem jovem, adolescente, o primeiro curso que eu fiz foi nessa instituição, e fico muito feliz que a mais de 35 anos o IDESQ vem desenvolvendo um trabalho com quem mais precisa. Muito já foi feito, mas tem muito o que fazer ainda.
Que melhorias você vê como possíveis para o trabalho que o IDESQ realiza junto à comunidade negra?
Fica um anseio meu de que dentro dessa lei do aprendiz e desse trabalho que o IDESQ desenvolve, nós deixamos muitos jovens de fora. Então, causa em mim um desconforto muito grande porque eu sei que há muitos dos jovens que a gente não consegue alcançar, que são os vulneráveis dos vulneráveis, a juventude negra tá lá e quem pega eles são o tráfico. Outro anseio meu seria de que forma a gente poderia trabalhar o empoderamento da juventude. Isso também é um grande desafio e que eu fico inquieta porque os jovens ficam um ano nessa relação com o IDESQ, depois eles vão embora e a gente não aproveitou [ao máximo] o potencial da juventude, que é tão forte, que é alegre e de muitas capacidades. Sinto que a gente desperdiça, não aproveita e não trabalha com eles essa liderança. Sou muito animada de pensar que um dia teremos que ter né na diretoria do IDESQ um jovem.
O que você acha que falta do mercado profissional em relação ao movimento negro?
Quando eu penso a estrutura de mercado e a questão profissional, são muitas coisas a serem ditas. O Brasil é um país racista e o racismo está em toda parte, está em todas as instituições, seja privada, seja pública, e a desigualdade no mercado de trabalho é gritante. Quando se pensa na juventude negra, aí é que têm muitos obstáculos, muita resistência, é um campo muito difícil. Eu vejo alguns jovens negros que vão para as várias entrevistas e não conseguem passar. O mercado tem um padrão que muitas vezes a juventude negra não se inclui. Não é o caso do IDESQ, porque temos cursos de serviços administrativos, mas os cursos oferecidos para os jovens, na maioria das vezes, são de corte e cabelo, de manicure, de aprender a fazer salgados. Uma vez eu até escutei uma conversa da gente do MN: ‘poxa, por que não oferece um curso para ensinar o jovem a ser dono do salão? Para ensinar o jovem a ser o dono da padaria?’. Além de tudo isso, as empresas criam milhões de critérios e de dificuldade para incluir a juventude negra. Se eu fosse dona de uma empresa, com certeza eu pensaria na questão da inclusão racial, na questão das cotas. Assim como o Estado tem o dever de promover a igualdade racial, então algumas empresas, que têm uma visão mais na frente, deveriam pensar sobre essa questão da cota dentro das suas empresas nessa tentativa de promover a igualdade racial. A juventude negra precisa de oportunidade dentro da esfera do trabalho e nós ainda somos a minoria.
Como uma pessoa que lutou a vida toda contra o racismo, o que você tem a dizer para a juventude em geral?
Que devemos estudar, devemos nos profissionalizar, devemos estar juntos pensando nessa liderança, desenvolvendo essa liderança da juventude, se juntar com outros grupos e lutar por políticas públicas voltada para as juventudes. Às vezes eu fico triste porque os jovens que ali estão no IDESQ, estão ali, cumprem a missão, vem, estudam e vão para o primeiro emprego, mas é uma coisa que só fica ali. Nós não conseguimos acender neles esse desejo de estar junto com outros jovens para a lutar por mais oportunidades. Sei o quanto as juventudes são esquecidas. Fico pensando um jovem preto, pobre, periférico e LGBT, imagina o tamanho da exclusão que esse jovem sofre? E às vezes eles sofrem sozinhos. Quando você se aglutina e está em um grupo, você tem força, consegue se articular melhor e lutar por questões que incomodam ou por oportunidades.
Quando você começou no movimento negro? Quantos anos você tinha?
Eu iniciei no movimento negro, aqui no Parque Santa Maria, em Fortaleza. Eu tinha uma participação ativa dentro da Igreja Católica e, na década de 1980, a campanha da fraternidade tinha como slogan “Ouvir o clamor desse povo”. Havia um padre [Luis Fonasier] muito revolucionário, aqui na comunidade, e ele juntou alguns jovens na época pra poder pensar sobre esse tema dentro da campanha, ligado aos grupos pastorais. Então, entre esses jovens éramos eu, Kim [Lopes], Joelma [Gentil], e a gente tinha esse desafio de juntar outras juventudes pra discutir essa questão da consciência negra. Eu era bem jovem, eu tinha entre 17 a 18 anos.
Que aspectos você encontrou como dificuldades nesse início?
Fomos entendendo que nós precisávamos ter mais estudo sobre a questão racial pra que esse nosso enfrentamento fosse de fato mais firme. Entendemos que a gente precisava estudar sobre a questão racial, pra poder juntar outras pessoas, que esse era o maior desafio, juntar a juventude da época pra gente estudar e pensar sobre o negro na comunidade. Lembro que antes do MNU, nós, através da capoeira, conseguimos formar vários núcleos de capoeira aqui em toda a Messejana, com o objeto de atrair a juventude negra e daí começar todo um trabalho de conscientização, consciência racial que é a base, é o começo de tudo.
O Movimento Negro Unificado no Ceará completou 25 anos no dia 22 de julho. E você é uma das fundadoras. Como foi o processo de surgimento do MNU no Ceará?
Nós passamos um tempo fazendo esse trabalho dentro dos grupos pastorais da igreja e, depois, de uma certa forma, rachamos com algumas ideias do padre que nos incentivou dentro dessa questão da consciência racial. Queríamos ser mais um grupo político, um grupo mais politizado. Queríamos de fato agregar mais conhecimento para o enfrentamento do racismo, do combate ao racismo. Foi quando a gente conheceu o Movimento Negro Unificado, através de um encontro que teve, que era o Nordestão da Pastoral Operária. Lá, eu e Joelma, conhecemos o MNU da Bahia através do Ronaldo Barros, e ele veio em seguida com toda a documentação do movimento negro, carta de princípios, estatuto. Entendemos que a gente queria fundar o Movimento Negro Unificado aqui no Ceará. Eu, a Joelma, e o Kim somos alguns dos fundadores do MNU, ele chega aqui no Ceará pelas mãos das mulheres negras.
Como está o MNU atualmente?
Nós éramos um grupo pequeno, mas hoje o MNU com 25 anos, já avançou muito do ponto de vista de números de militantes. Atualmente nós temos muita gente e têm alguns professores universitários, têm pesquisadores, têm a juventude negra dentro do MNU, grupos de mulheres do MNU, grupo de comunicação que discute sobre educação, grupo de formação. Então, hoje, nós avançamos muito do ponto de vista do número de militância e conseguimos dar mais visibilidade ao movimento negro aqui no Ceará.
Qual o seu papel no MNU e o que o movimento representa para você?
Estou na Coordenação Estadual de Finanças. O Movimento Negro está pela sua própria conta, então os filiados colaboram com um valor para poder custear as nossas ações. Esse é o meu papel hoje, conversar com a militância, sensibilizar a militância da importância da colaboração dos filiados. Nós temos pessoas brancas que colaboram com a luta. Nós entendemos que a luta e o combate ao racismo, as desigualdades, e a luta por reparação para o povo negro, é também junto com o povo branco. Nossa luta não é contra o branco, é contra esse sistema de desigualdade, desse racismo posto, desse racismo como uma ideologia de poder. Então, não é que o povo branco não possa estar com a gente, é importante sim. Não há um combate ao racismo sem pensar no povo branco apoiando a nossa luta. O MNU na minha vida foi o pontapé de tudo. Você só consegue enfrentar e combater o racismo quando você está nos grupos que discutem a temática. Então é muito difícil enfrentar o racismo sozinha, você precisar estar junto com outras pessoas negras se apoiando para lhe encorajar a enfrentar e combater o racismo ou a superação do racismo.
Leda, você quer falar nessa matéria de alguma situação de racismo que você enfrentou?
A minha primeira experiência com o racismo foi logo na educação infantil, na sala de aula, sempre têm umas brincadeirinhas na comunidade que inferioriza a criança negra, que menospreza a criança negra. Então, na sala de aula eu era aquela menina do canto da sala. Bem difícil, mas eu sentia né? E na universidade também, que a representação negra dentro da universidade é muito pouca. Você até ver pessoas negras dentro da universidade, quando eu estudava não era só eu, mas às vezes a pessoa não se identifica como tal né, não tem a consciência de ser negro. O racismo ele se representa no olhar. Todo dia eu sofro isso na comunidade, a forma como as pessoas me olha, a forma como as pessoas enxergam o meu empoderamento, incomoda né? A forma como muitos homens me olha, e aí leva pra a questão do sexismo. Enfim, as brincadeirinhas racistas como ‘Ah! Negra safada’, ‘Essa negra é muito safada!’. Então todo dia eu me deparo com o racismo, todo santo dia, com os olhares, com as brincadeirinhas machistas.